Micro Membro
Idade : 28 Alerta : Data de inscrição : 04/02/2010
Frase pessoal : destination unknown
| Assunto: Arquivos Folclóricos Seg 13 Jan 2014 - 3:19 | |
| - O autor escreveu:
- Isso é uma ideia que eu venho tendo a muito tempo. Todo mundo vive falando dos deuses gregos, nórdicos, chineses... mas e a mitologia brasileira? Existem várias entidades muito curiosas e interessantes que valem a pena ser levadas a sério da nossa própria cultura.
E eu sei que ele se chama Perci com I. E não tem nada a ver com o Percy Jackson. Pelo contrário, é um easter egg da literatura brasileira. Quem descobrir a verdadeira conexão entre os dois protagonistas ganha um doce. Era uma bela noite em Recife. Faltando apenas cinco dias para o natal, a cidade estava bastante movimentada, principalmente no centro comercial da cidade. O clima estava agradável: comparado ao resto do verão, era uma noite fresca, visto que poucas horas atrás tinha caído uma leve chuva na região. Era cedo; cerca de duas da madrugada e por causa do horário certas partes da cidade se tornavam cada vez menos movimentadas.
Uma destas ruas era a Rua da Aurora. Embora sendo um ponto famoso e bonito, ficava um pouco fora de mão do resto da cidade. A calçada estava quase vazia, exceto por alguns bêbados e corredores, que aproveitavam o horário e a falta de sono para fazer exercícios. Em um dos pontos desta rua jazia uma escultura do grande escritor Manuel Bandeira, que permanecia apoiado pensante à grade que conectava os dois lados de um arco de pedras quebrado, no meio da calçada.
A poucos metros da estátua estava um casal de jovens, apoiados na mureta que separava a calçada do Rio Capibaribe. O rapaz era alto e moreno, cabelo liso negro curto, naquele topete típico de rapazes brasileiros, usando apenas uma camiseta cinza com calça jeans e botina. Era bastante malhado, embora não fizesse academia, e a camiseta mostrava suas inúmeras tatuagens tribais brancas dos mais diversos animais, que enfeitavam seus braços, peito, costas, pescoço e pernas. A garota por outro lado era branca e tinha longos cabelos loiros, com algumas mechas tingidas de azul e rosa. Vestia uma blusa branca "I ♥ NY" e shorts jeans curtos, acompanhados por uma jaqueta de couro e meias que passavam da altura dos joelhos, terminando em um Converse avermelhado. Ambos tinham os braços repletos de pulseirinhas e fitas do bonfim com vários tipos de escritas e munhequeiras.
Enquanto o rapaz estava apoiando suas costas na mureta, olhando fixamente para a estátua, a garota estava debruçada sobre a mesma, tentando abrir seu Facebook em um Iphone rosa personalizado. Ela estava cansada: estavam naquele lugar a mais de três horas, esperando por uma pessoa, e até então nada. Frustrada, ela jogou o celular em sua bolsa enfeitada por lacres coloridos de latinhas de alumínio, e se virou para o rapaz.
- Olha, eu sei que é uma missão importante, e tudo mais... mas já são duas fucking horas da manhã e nada do Negro aparecer aqui. Tem certeza de que a Agência não errou dessa vez não?
Sua voz era agitada e nervosa. Ela terminou de falar, cruzando os braços e agitando o pé de maneira impaciente, esperando a resposta do garoto.
- Cecília, eu também não curto ficar acordado até tão tarde assim não. Mas a gente não pode deixar que ele saia do país. Você se lembra do que aconteceu da última vez que uma entidade conseguiu fugir, não é?
Sua voz era grave e cansada, e por pouco ele não bocejou. Parecia ser uns cinco a sete anos mais velho que a garota, que provavelmente beirava os quinze anos.
- Mesmo assim, Pê! Faltam cinco dias pro natal! Quem sabe as entidades também não decidiram tirar umas férias?
- Para de sonhar alto, menina.
Ela emburrou a cara, e virou-se para o lado contrário do rapaz, numa atitude rebelde e infantil. Mas ao fazê-lo, percebeu a aproximação de uma figura distante, que se não fossem as circunstâncias atuais, não chamaria tanta atenção assim.
- Ah, até que enfim o corno chegou. Já podemos chutar a bunda dele, não?
- Calma, Cecília. Lembre-se que temos que tentar sempre um diálogo primeiro. Não podemos nos esquecer do...
- "...Código de Agente". Eu sei, eu sei... mas tá na cara que ele não vai dar meia volta só por que a gente tá pedindo, né?
O rapaz deu de ombros, e tornou a observar a figura que se aproximava. Era um senhor de idade, afrodescendente, com cabelo branco curto e barba bem-feita. Trajava roupas normais de senhores de idade: blusa social antiga dentro de uma calça bege presa por um cinto e sapatos de couro. Ele descia a calçada acompanhando a correnteza do rio, e cada passo seu a água parecia imitar.
Andava de cabeça baixa, e só a levantou para cumprimentar os dois garotos.
- Boa noite, jovens...
- Boa noite, senhor.
- Está fazendo bastante frio hoje, não?
- Eu acho que está agradavelmente refrescante hoje.
- E o que dois garotos fazem acordados a essa hora?
- Aproveitando um tempo sozinhos antes do natal.
- Ah, se eu tivesse a sua idade...
Pê respondeu ao cumprimento. Cecília estava começando a perder a paciência com aquele teatrinho todo: os dois homens sabiam exatamente quem era o outro, e estavam fazendo aquilo apenas por cordialidade. O Código do Agente impedia um confronto surpresa com qualquer entidade, independente da situação.
- Por favor! Pê, já tá bom né? A gente precisa colocar no Código algum algum artigo abrindo excessões em missões às duas da manhã de um dezembro, por favor.
- É, ouça a menina, rapaz. Também não tenho todo o tempo do mundo para vocês não. A Europa me aguarda!
A voz do senhor mudou bruscamente. De indefeso e calmo, passou a irritado e apressado. Sua postura também mudou: ergueu-se retamente, deixando a postura curvada de lado. Embora não fosse obrigatório, o teatrinho era bastante importante no confronto de uma entidade. Ao ser desafiado, o ser começa a excretar ondas de energia de repulsão, que faz os humanos comuns tenderem a se afastar do local. Serve principalmente para evitar testemunhas, visto que nem todos estão preparados para encarar a realidade do jeito que ela é.
Afinal, é certo que o mundo entraria em colapso caso ele soubesse que seus mitos e lendas fossem todos reais. Todos reais.
A entidade se aproximou da estátua de Manuel Bandeira, e começou a tateá-la em busca de alguma coisa. Ao mesmo tempo, Cecília e Pê colocaram as mãos defensivamente em seus pulsos, que estavam amarrados por duas pulseiras, semelhantes às pulseiras de neon. Mas estas não brilhavam por causa de reações químicas baratas.
- Senhor, eu gostaria que você se afastasse da estátua, por gentileza.
Embora Pê tenha sido educado, o homem levantou uma mão em direção ao garoto, mostrando o dedo do meio. Cecília riu.
- Pelo menos esse aí é mais atualizado. Já cansei de ver entidades me chamando de "Vossa Mercê".
- Por favor né! Eu sou velho, mas antiquado já é pedir muito de mim.
- Senhor... como Agente Honorário da Agência Brasileira de Casos Especiais Folclóricos e Católicos, eu exijo que você se afaste dessa estátua imediatamente.
A entidade olhou na direção dos dois garotos, seus olhos brilhando em um azul congelante. Eles literalmente brilhavam, no escuro. Ele terminou de tatear a estatua, e então desenhou um P de quinas quadradas na testa da estátua do escritor, muito semelhante a uma bandeira de Campo Minado. Era o símbolo atribuído ao escritor: uma bandeira ao Bandeira.
- Eu acho que vocês não me entenderam garotos. Eu estou indo para a Europa. Para os Jardins Persos. "Lá, eu sou amigo do rei. Lá tenho a mulher que eu quero na cama que escolherei."
A estátua magicamente se afastou do arco, e este se reparou rapidamente, consertando uma falha que o tempo tinha causado na construção. Aos poucos, o aro de pedra começou a brilhar, e então feixes de luz começaram a se cruzar em seu interior, criando uma parede luminosa.
- A maldita da Iara pensa que pode nos manter presos em terra? Por favor. Os nossos autores criaram outras inúmeras formas de sair daqui.
O senhor se afastou do portal, andando na direção dos garotos. Ele colocou a mão em sua camisa, e com um puxão, rasgou-a de seu corpo. Por debaixo dela, ele era monstruosamente musculoso. Sua pele era repleta de escamas marrons. Haviam alguns rasgos na lateral do tórax e dos pescoços, que provavelmente eram guelras. E entre seus dedos haviam membranas semelhantes às dos sapos.
- Só por que eu sou uma entidade menor não quer dizer que a Agência não deveria ter medo de mim.
- Então você não vai se render pacificamente?
- O que você acha, mulatinho?
Pê deu de ombros, frustrado. Ele ainda tinha a esperança de que, um dia, as entidades iriam se render a uma conversa simples e pacífica. Roboticamente, ele segurou na borda inferior de sua camisa, e com um puxão removeu-a de seu corpo, revelando a maioria de suas tatuagens tribais. Cecília deu uma tossezinha nervosa; por mais que ela tivesse se acostumado com a atitude, ainda se sentia invadindo a privacidade do rapaz sempre que este o fazia. As tatuagens seriam usadas durante a batalha, e ele não conseguia usá-las com alguma camada de roupa por cima delas. Ele já tinha tentado, mas acabou perdendo duas camisas caras repletas de furos e rasgões. Os dois puxaram as pulseirinhas de neon quase ao mesmo tempo, e ao serem removidas as duas se tornaram dois objetos completamente diferentes.
- Ah, agora eu sei quem vocês são. Uma lança e uma zarabatana?
A entidade jogou-se na direção dos dois garotos. Cecília pulou para o lado, desviando, mas Pê tentou segurá-lo com o cabo da lança, sendo jogado para trás em direção ao rio.
- Perci Cauã, o Salvador da Régia, e Cecília Menezes, a Domadora das Serpentes, não estou certo?
- É, pelo visto ser famosa tem seu lado ruim.
Cecília soltou um leve sorriso irônico, e rapidamente levou sua zarabatana à boca, soprando nela em direção à entidade. Mas ao invés de serem disparados dardos, pequenas setas de fogo saíram do canudo de madeira. Perci e Cecília já eram companheiros da Agência fazia quase um ano, e obtiveram seus aliases durante sua primeira missão. Era uma atitude comum da Agência dar um pseudônimo para seus agentes de acordo com o resultado da primeira missão. E no caso deles não foi diferente.
Geralmente, a Agência treina seus agentes dentro de um local fechado até que eles descubram a sua afinidade. Afinal, todo agente precisa ser escolhido por um Deus para poder reproduzir suas habilidades durante a caça às entidades. Mas no caso de Cecília e Perci, foi diferente. Eles foram despachados para uma missão emergencial no Amazonas após apenas uma semana de treinamento. E todos achavam que era uma missão suicida.
Mas eles voltaram, e ainda bem sucedidos.
Perci teve que se jogar no Rio Amazonas, para salvar uma das índias filhas da Vitória Régia, que estava amaldiçoada a ter o mesmo final da mãe. Parece ser algo simples, mas na verdade os monstros de Mboi Tuí, o Deus das Criaturas Aquáticas, tentaram sabotar a missão, atacando-o debaixo d'água. Caso a menina fosse sacrificada, como dizia a lenda, seu sangue envenenaria Iara, e dessa maneira o mar perderia a sua barreira mágica e as entidades estariam livres para nadar em direção ao resto do mundo. E todo mundo sabe que as entidades não podem sair do seu país de origem, ou o mundo que conhecemos acabaria. Ele passou por vários apertos, quase morrendo afogado tentando salvá-la, e foi nomeado um Agente de Caipora, o deus dos animais, no último instante. E assim conseguiu se salvar.
Cecília não foi muito diferente. Ela precisou capturar o espírito angustiado de Boitatá, que fugiu da Catedral de Brasília, usando as próprias mãos. A entidade se aproveitou do corredor formado pelo arco do desmatamento e atingiu o Pará facilmente. E, convenhamos, segurar uma cobra de fogo que foge a uma velocidade incrível de 100km/h tacando fogo em tudo em seu caminho, é difícil, certo? Com ela ainda foi pior, pois seus equipamentos todos foram destruídos pelas Criaturas Aquáticas, e por isso ela precisou literalmente usar as próprias mãos. Ela só não morreu por que ela foi nomeada no último momento uma Agente de Angra, a deusa da luz e do fogo, e por isso ela se tornava imune às chamas.
E não apenas a primeira missão: eles estavam cansados de pegar os trabalhos mais perigosos e cansativos da Agência. Ainda mais ultimamente, que o número de Agentes tinha caído drasticamente.
Pê caiu no rio, mas graças à sua habilidade, uma de suas tatuagens tribais ganhou vida. Eram duas imagens do signo de Aquário ♒, na região do seu pescoço, simetricamente opostas, que davam vida a guelras. A entidade desviou habilmente das setas de fogo, e lançou-se no rio, em direção a Perci, fazendo uma pergunta em pleno ar.
- Vocês são muito tapados de tentar lutar contra mim perto de um rio, não acham?
- Eu te falei, Pê! Vamos abordar o Negro D'água enquanto ele tá super far away do litoral, por que né, senão a gente tá fudido! Mas não, vamos seguir o código idiota e nos matar!
Cecília continuou a reclamar, enquanto os dois homens disputavam socos debaixo d'água. Com um chute, Perci conseguiu afastar o Negro por alguns segundos, e rapidamente localizou sua lança, que boiava na superfície da água. Ele então emergiu, agarrando sua arma, e gritou uma ordem para Cecília.
- Mulher, cala a boca e tenta fechar o maldito portal enquanto eu distraio ele!
Quase que instantaneamente, a entidade agarrou o pé do garoto, submergindo-o. Cecília mostrou um dedo do meio na direção do rapaz, e então partiu em direção ao arco de pedra. O arco tinha parado de brilhar, e a parede de luz que ocupava seu interior tinha desaparecido, abrindo espaço para um corredor espacial. Bem, é meio difícil de explicar. Imagine que o arco se tornou uma das duas entradas de um corredor branco luminoso, e que outro arco exatamente igual podia ser visto no fim deste corredor. Mas o arco do outro lado estava na Europa. Ou seja, você conseguiria atravessar o mundo em pouquíssimos segundos.
- Manuel Bandeira, você ainda me paga por querer ir pra Pasárgada. Por que você não quis ir pra algum lugar dentro do país, como Floripa, que nem todo brasileiro inteligente quer?
Embora o corredor fosse reflexo do poema do escritor, Cecília sabia que este não tinha culpa nenhuma do seu trabalho ganhar vida. Aquela não era a primeira vez em que uma prosa se tornava realidade: o Sítio do Pica-Pau Amarelo, por mais infantil que parecesse, era um local real, e era a segunda sede mais importante de toda a Agência. Os engenhos de José Lins do Rêgo eram pontos de parada espalhados pelo Brasil, onde os Agentes podiam pernoitar quando necessário. E até mesmo a lagoa d'Os Sapos existia: e lá ficava a sede administrativa da Agência, onde os chefes da organização planejavam as ideias e missões. Aliás, Sapo Cururu era o codinome do atual chefe deles.
Cecília pegou um pote de areia de dentro de sua bolsa, e, abrindo-o, jogou seu conteúdo na direção do portal. A areia se espalhou dentro do corredor, e ficou parada em pleno ar, formando uma nuvem poeirenta de areia mágica. A garota levou sua zarabatana à boca, e recitou algumas palavras em tupi, logo após soprando pelo canudo. O objeto emitiu uma onda de fogo, mas que não teve nenhum efeito no portal.
- Ué, não deu certo?
A garota tentou mais uma vez, sem obter resultados. Raivosamente, ela soprou algumas bolas de fogo pela zarabatana, que ricochetearam pelo corredor até sair pelo outro lado, na Pérsia. "Bosta. Já até vejo os jornais amanhã falando de um incêndio nas ruinas Persas." pensou para si mesma, enquanto se castigava por fazer a idiotice de jogar energia destrutiva contra uma superfície mágica. Afinal, todo mundo sabe que magia repele magia.
- Pê, não tá funcionando! O que eu faço?
Ironicamente, mal a garota terminou de falar, o garoto foi arremessado com um chute de dentro do rio na direção do portal. Ele quicou duas vezes na calçada antes de parar dentro do corredor mágico. A entidade veio acompanhando-o logo atrás. E mal tocou o chão, ela começou a falar com Cecília.
- Mas é claro que você não vai conseguir fechar esse portal. Quem é que já viu uma Agente brasileira vestindo uma camisa "Eu amo Nova York"? Falta de amor à pátria enfraquece a sua magia, não sabia?
E era essa a causa do número baixo de Agentes atualmente. O caos político aliado ao quadro da copa do mundo tornou o país repugnante aos próprios Brasileiros. E por causa disso, o número de Agentes que já era minúsculo conseguiu ficar ainda mais escasso. Se houvessem, no total, mais de cem agentes nos dias de hoje, já era lucro. Perci se levantou, encharcado e machucado, e saindo do portal se dirigiu à garota, que estava ajoelhada perplexa ao lado da estátua pensante de Bandeira.
- Ok, Cecília, você cuida dele que eu fecho a magia.
A garota balançou a cabeça de um lado pro outro, saindo do transe, e se levantou, ficando de frente para o Negro D'água. Este não conseguiu fazer nada além de rir, menosprezando a garota.
- Ah, por favor. A menina nem sequer consegue me acertar, quanto mais me deter? Eu aposto que o Boitatá ficou com pena dela e deixou-se ser capturado.
Cecília levou a zarabatana à boca, rindo. Ela adorava quando os outros subestimavam-na, por que ela então conseguiria arrancar o sorrisinho da cara deles na base da unhada. Enquanto isso, Perci começou a tatear cegamente a estátua, em busca de um botão que pudesse desligá-la.
- Eu achei que você fosse mais esperto do que isso. Parece que a idade vai deixando a pessoa cada vez mais burra, não?
- Pode blefar o quanto quiser. Enquanto você tiver essa camisa estrangeira aí, você não vai me acertar.
- Pois então, acho que vou te dar uma aula de Modernismo.
A entidade olhou-a com cara de espanto. Por alguns segundos, ela não tinha a menor ideia do que fazer. Aquela garotinha tinha mesmo dito o que ela tinha acabado de falar?
- Já ouviu falar em "antropofagia"?
- Não é possível...
- "Tupi or not tupi, that's the question".
E com um sorriso, a garota soprou dentro de sua zarabatana.
Acho que é válido explicar a situação. Os Agentes possuem seus poderes por que eles pegam emprestado de Deuses maiores. E esses deuses só possuem poder dentro do território nacional. Logo, em países estrangeiros, os Agentes se tornam humanos comuns. E é por isso que se uma entidade conseguir fugir, os agentes não poderão usar suas habilidades lá fora para caçá-los.
Basicamente, o exterior é o ponto fraco de qualquer Agente. Pode dizer que é xenofobia, mas é apenas uma questão de cultura. Mas raramente, muito raramente, aparece de vez em quando um Agente que é imune a tal fraqueza. Pelo contrário, ele se torna ainda mais forte ao entrar em contato com o exterior. Como diria Andrade, o propósito é "deglutir o estrangeiro". E desta maneira, ele se torna ainda mais poderoso.
O Negro D'água ficou envolto em um mar de chamas azuis, que qualquer um poderia julgar serem impossíveis de saírem de uma zarabatana mágica. Ao ser atingido, a entidade recuou rapidamente para o rio, tentando apagar o fogo que envolvia seu corpo. Mas logo ele tocou a superfície da água, ele percebeu que as chamas não se apagavam.
- Já se fazem tantos séculos que eu não via chamas azuis que eu já tinha me esquecido de como é difícil apagá-las. Angra deve estar orgulhosa.
Cecília riu, empinando o nariz. Logo depois ela completou, cantando.
- "This girl is on fire"... ah, eu sempre quis falar isso!
Ela então se virou para Perci, que ainda brigava para descobrir o mecanismo da estátua. O garoto perdeu a paciência, e socou o escritor de pedra na testa, o que acabou por apagar parte do símbolo da bandeira que brilhava em sua superfície.
- Ah, você tá brincando que era só eu ter feito isso antes?
Ele então terminou de passar a mão na careca do homem, limpando o resto do símbolo. O portal aos poucos foi se fechando, até que a luz sumiu completamente, e a estátua voltou à posição inicial. A grade emergiu de dentro do chão, voltando a se posicionar debaixo dos braços do escritor, e parte do arco que tinha sido regenerada voltou a se soltar, caindo com um baque surdo no chão.
- Finalmente. Agora vai demorar pelo menos mais um mês até que o arco se carregue novamente, pelo que nos falaram.
Cecília levantou um punho fechado, que foi completado por outro soquinho do rapaz.
- Cadê o Negro D'Água?
- Ah, agora que você falou nisso... eu acho que ele fugiu.
Perci se dirigiu ao parapeito, olhando na direção do Rio Capibaribe. Nada. A entidade tinha desaparecido. Mas também era melhor assim: as entidades, mesmo quando mortas, voltavam à vida depois de um tempo. Então foi apenas energia economizada.
- Pelo menos, a missão acabou agora. Impedimos que o Negro viajasse até Pasárgada.
Cecília deu um salto de alegria, enquanto o rapaz espreguiçava-se. Afinal, já eram quase três da manhã agora. Eles estavam exaustos: usar a magia, mesmo depois de um ano de treino, ainda gastava muito da capacidade deles. E com um bocejo, ele guardou a lança de volta no pulso, voltando à forma anterior. Mas Cecília ignorou o som emitido pela boca dele, e pulou em suas costas.
- Agora, você vai me levar de cavalinho pro engenho. Por que eu salvei a sua vida, ok?
Ele suspirou, e ajeitou-a em suas costas, enquanto a garota guardava sua zarabatana no seu pulso. Eram pelo menos uns bons dois quilômetros até o engenho mais próximo. Seria uma longa caminhada.
- Ei, Pê, qual que você acha que vai ser a cor da pulseirinha dessa vez?
A garota esticou seu braço esquerdo na frente de seus olhos. Ele estava preenchido por umas oito fitas do bonfim, cada uma escrita com uma cor e texto diferentes. A primeira era vermelha, e dizia Domadora de Serpentes, e por aí iam, descrevendo cada uma das missões concluídas dela.
- Podia ser uma laranja. Eu sempre quis usar meu sapato laranja combinando com uma pulseirinha.
Ele deu de ombros, e continuou a carregá-la em suas costas. Ele estava realmente cansado, e não tinha tempo pra discutir moda com a garota.
- Ah, por favor. Eu sei que você não pula pra esse time, mas porra, você podia fingir interesse de vez em quando, que nem os meninos que tentam ficar comigo.
Perci levantou o dedo do meio para a menina, que respondeu com um chute brincalhão entre as costelas dele. É, seria uma longa caminhada. | |
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