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Mensagem por Kirehana Yurika - Nanda Qui 15 Dez 2011 - 21:10

Um Reino Só Nosso...

É triste para uma criança ter um conjunto de praia e viver numa cidade longe do litoral. Naquele dia eu estava tão triste com essa realidade que, para me contentar, minha mãe me levou até um parque. Eram quase três horas e as crianças ainda estavam eufóricas, cada vez mais entorpecidas em suas brincadeiras: rindo, correndo, se escondendo, explorando os cantos do parque com a bravura dos guerreiros e heróis de suas séries prediletas, envolvidos em suas doces fantasias e faz-de-conta.

Os pais, a sós ou não, observavam seus filhos de longe nos bancos da praça, com aquela paciência fraternal a qual hoje em dia eu admiro. Uma sombra projetou-se encima do meu protótipo de castelo de areia, que nada mais era do que o molde grotesco do meu baldinho sutilmente modifico pelas batidas da minha pazinha. Olhei para ela e lá estava: tinha cabelos castanhos, ondulados e curtos na altura do pescoço com uma fivela no canto da testa.

Grandes óculos adornavam seu inocente rostinho redondo e salpicado de sardas, quadrados como molduras e enchendo de encanto seus olhos escuros... Claro, eu era jovem demais para perceber o quanto ela era graciosa, afinal, deveríamos ter a mesma idade naquela época. Mas eu lembro bem de seu rosto, pois foi por um longo tempo que aquela garota de blusa listrada e macacão roxo se pôs a olhar para mim.

- Gostei muito do seu castelo de areia! - ela disse. Crianças se impressionam com facilidade, e não receiam em dizer algo mesmo quando estão enganadas.

- Obrigado - eu respondi - Mas está muito mole, pode desmoronar a qualquer momento.

- Você quer ajuda? - se agachou, olhando para mim.

- É claro!

O pai dela estava sentado próximo a minha mãe. Quando perceberam que olhavam na mesma direção, trocaram olhares e sorriram timidamente. Em determinado momento, eu e Molly estávamos tão entretidos na construção de nossa fortaleza medieval, que deixamos de lado as pás e baldes e moldamos o castelo à mão, erguendo-se lentamente a base de areia e água. O pôr-do-sol se aproximava, e nós ficávamos cada vez mais contentados com a ideia de que não terminaríamos o castelo à tempo de ir para casa, rindo de nossas roupas sujas e de nosso completo fracasso. Ela dizia que gostava muito de quadrinhos, e tinha muitas revistinhas e jogos de videogame na sua casa. Antes de irmos embora, surpreendi minha mãe com um convite inesperado:

- Mamãe, o papai da Molly fez bolinhos! - eu disse, olhando para cima. Minha mãe era tão grande naquela época... - Eles moram logo ali na esquina, Molly me chamou pra um lanche na casa dela. Vamos mamãe, vamos, por favor!

Quando se é criança, fica difícil para seus pais negarem suas ofertas - entre tantos motivos, este é um dos que torna nossa infância tão melhor que a fase adulta, conforme nossos pais e chefes tendem a se tornar cada vez mais fechados aos nossos humildes pedidos. O pai de Molly sorriu para a minha mãe que, sem graça, nada pôde fazer senão concordar. Eu e Molly pulamos de felicidade.

Quando lá chegamos, após esfregar nossos pés no carpete da porta, nos deparamos com uma casa pequena e muito bem fornida. Os movéis eram simples mas elegantes, uma copa com uma pequena sala de jantar, uma sala de estar com uma grande televisão e diversos consoles acompanhados de um aparelho de blu-ray, cortinas semi-transparentes tremulando com o vento que entrava pela porta de vidro aberta que nos guiava à varanda da casa. Molly adentrou o recinto com naturalidade, enquanto eu e a mamãe continuávamos a admirar os cômodos daquela bela casa de classe média alta.

O cheiro de bolinhos estava no ar, era de dar água na boca. Molly se pôs diante de nós, pronta para nos apresentar à sua família.

- Esse aqui é o meu papai - e apontou primeiro para o rapaz que havíamos conhecido previamente. Surge um outro jovem, louro, com a testa suada e um sorriso atraente, usando um avental sujo de massa de bolo - E esse é meu outro papai!

Não sei descrever a expressão da minha mãe naquela hora. Sei que, após a surpresa inicial, um largo sorriso lentamente surgiu em meu rosto.

- Você tem dois pais?! Que legal!

Por sorte, eu pude poupar minha mãe de complementar minha sentença: "mas onde está a sua mãe?", eu ia perguntar. Para a minha sorte, e pra dela também, eu simplesmente não o fiz.

Quando cheguei em casa naquela noite, eu jantava com meus pais como sempre o fazia. Minha mãe terminava de preparar a sopa de feijão, naquele silêncio sepulcral muitas vezes estabelecido pela seriedade e inflexibilidade do meu pai. Ainda com os trajes sociais de seu trabalho, ele fechou o jornal sobre a mesa e disse decidido:

- Ele não vai mais voltar à casa dela.

- Márcio! - disse minha mãe, o repreendendo.

- Não vai voltar e está decidido. Não se fala mais nisso.

A panela de barro bateu com certa violência contra o centro da mesa. Minha mãe olhou para o meu pai com um olhar fulmegante que eu não tive o desgosto de ver.

- Vamos falar sobre isso.

- Mais tarde... Estou cansado.

- AGORA.

Meu pai poderia até ser um ogro, mas não contestava as ordens da minha mãe. Deixaram a mesa sem nada a me dizer, subindo as escadas até seu quarto. Minha mãe olhou para mim, fazendo um sinal com a mão para que eu esperasse... Por fim, a decisão foi unânime.

Na tarde seguinte, fui até o parque e a encontrei na gangorra. Molly balançou o braço para mim com um sorriso, e sério, caminhei solenemente até ela.

- Não posso mais falar com você - eu disse secamente. Mal sabia o quanto eu estava ficando parecido com meu pai.

- Por que não? - ela não queria acreditar no que ouvia.

- Porque você é menina.

Um silêncio se estabeleceu entre nós, como se apenas aquilo bastasse como uma justificativa plausível.

- Meu pai não quer que eu brinque com você - eu continuei - Se eu brincar com menina, vou gostar de coisas de menina e os meninos vão caçoar de mim.

- Não é verdade! Você sabe que eu não gosto nem de brincar de coisas de menina!

- Mesmo assim!

- Você não gosta de mim?! - seus grandes olhos marejados começaram a afetar sua voz, tornando-a soluçante.

- G-gosto, mas!...

- Então porque não podemos ser amigos?!

Me limitei a não dizer mais nada, conforme Molly se encolhia na gangorra se pondo a chorar inconsolavelmente. Não demorou muito até eu deixar aquele parque, não tinha mais nada a fazer por lá.

Foi generosidade do meu pai ter me deixado despedir de Molly. Ou se foi generosidade da minha mãe, eu nunca vou saber...

Os anos se passaram, e eu cresci. Mudei, como tinha que ser... Essa é a magia do tempo. Mas nem sempre se muda para o progresso.

Como tinha que ser, meu pai não melhorou com os anos. Minha mãe foi ficando saturada da sua rigidez, sua indiferença, o desdém com que tratava os membros da sua tão preciosa família. Meu pai, que trabalhava feito um animal apenas para nos manter e nos dar do bom e do melhor, certamente estava cansado de ser retribuído com a mesma ladainha todas as noites... Ele estava ciente que chegaria o dia em que seria recebido em casa com um prato voador em sua nuca.

Por muito tempo fui disputado como um pedaço de carne por dois lobos famintos. Foi uma experiência desagradável para mim, ver a história de amor mais linda do mundo se tornando um pesadelo de terror diante de meus olhos. O quarto deles, cuja única finalidade no passado era abafar suas brigas, foi tornando-se completamente obsoleto conforme meus pais não escondiam mais seu desgoto na minha frente e meu pai começou a dormir no sofá da sala.

Eu tinha nove anos quando meus pais finalmente se separaram. Hoje tenho dezesseis e moro com minha avó.

Dez anos se passaram desde aquela dolorosa separação no parquinho, e hoje me pergunto se Molly continua feliz com sua diferente família. Queria casar com ela. Ter três filhos e dois sogros. Queria que ela fosse minha rainha, e assim seríamos os monarcas do nosso reino de barro, com as nossas regras, construído há anos atrás com tanto esmo. Mas isso nunca viria a acontecer...

Graças aos meus pais, perdi a oportunidade de ser uma criança com ética. Graças a eles, nunca mais fui o mesmo. Cresci e me tornei um adolescente preconceituoso, com a mente fechada em meus próprios mundinhos, desrespeitoso a outros pontos de vista e taxativo na escolha das minhas companhias... Mas estou disposto a mudar. Estou disposto a modificar, para o meu próprio bem. Apenas porque, hoje em dia, sinto-me com uma navalha no pescoço quando penso na moral da história que estou narrando...

Melhor dois pais do que nenhum.
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Mensagem por Bakujirou Qua 28 Dez 2011 - 21:40

Eu tinha receio de abrir o seu tópico pra começar a ler. Mas a curiosidade é mais forte, dai eu resolvi dar uma espiada na história.

Achei muito intrigante a passagem das cenas, em certo momento, achei que estivesse narrando uma menina, até que me dei conta que o protagonista/ a narração de primeira pessoa era um garoto.

.-. Ficou bem legal a mensagem final da fic. A one-shot acabou no ponto em que ela chega ao pequeno desfecho da história... Ficou bem legal mesmo. Eu curti.

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Mensagem por william ketchum Ter 3 Jan 2012 - 11:13

Nanda, a história está perfeita. Queria ter esse dom que você tem com as palavras. Consegui imaginar todas as cenas em minha cabeça enquanto se passava a história, como um filme. Gostei muito da One Shot e posso lhe garantir que você conseguiria fazer um belo livro, se tentasse.

See ya!




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