Capítulo 01: O Monstro da Tijuca
Um mês se passou. Todos os dias, as estranhas criaturas que começaram a brotar ao redor do mundo se tornaram o foco da atenção de todos. Percebeu-se logo que tais criaturas não eram hostis, pelo contrário: elas simpatizavam muito com humanos, principalmente os jovens. Depoimentos de australianos, europeus, norte-americanos, africanos e asiáticos relatavam seus encontro com monstros que se sentiram atraidos pelas suas figuras e lhes acompanham até hoje. Passaram a ser vistos inicialmente quase como que animais de estimação, até perceberem seus estranhos hábitos...
Toda vez que se encontravam, essas criaturinhas tinham o desejo enorme de competir uma corrida uns contra so outros. Chegando a disputar até quatro monstrinhos de uma vez, as corridas se tornaram passatempos divertidos para os donos destes montros. Sua fama foi crescendo e logo cães e gatos foram praticamente esquecidos pelas crianças: todas queriam um monstro corredor - apesar deste desejo estar bem mais presentes nas classes sociais mais elevadas, que eram constantemente bombardeadas com informações destes estranhos animais.
O Brasil é um país amplo, várias espécies de monstros habitavam nosso terrotório. Estranhos, porém carismáticos tatuzinhos de casca grossa e negra e pele branca (chamavam-se
Kerlupps) eram encontrados com frequencia por crianças amazonenses. Os
Florwolfes estavam entre os mundos animal e vegetal: estranhos cães brancos que desenvolvem uma camada de musgo na parte superior do corpo e uma grande flor na região caudal, e corriam de costas - por serem bonitinhos, ganhavam ainda mais charme quando seus donos lhe presenteavam com coleiras. Uma mãe no nordeste brasileiro, nos arredores interioranos da Bahia, vê seu filho chegando no barracão segurando uma estranha espécie de guaxinim (
Noxout):
- Olha o que eu achei na ribanceira, mãe!
- Valei-me, Nossa Senhora!!
Esses eram apenas alguns dos exemplos de monstros encontrados em nosso território. Apesar disso, na comunidade São Sebastião, a existência de monstros ao redor do mundo não causou muito impacto na vida dos moradores. Santos estudava concentrado em seu quarto, ansioso para terminar o dever de língua portuguesa e sair para jogar pelada com os amigos na rua. Tem sua concentração interrompida por palavras faladas em alta voz pela mãe no andar de baixo de sua casa. Pousou o lápis sobre o caderno e silenciosamente desceu as escadas, na ponta dos pés magros e furtivos. Ouviu a mãe discutindo com o pai.
- Rogério, eu sei que dá o seu melhor, mas a Imperatriz é uma das poucas alegrias desse povo! Gostaria que pelo menos entendesse isso!
- Fátima, sei que significa muito pra você, mas nossas despesas estão curtas! - revidou o marido, falando num tom ligeiramente mais calmo - Não só as nossas, todos da comunidade estão passando por problemas financeiros!
- É, mas a escola de samba também é importante pras pessoas! Podemos tentar organizar um churrasco, uma festa beneficiente, convidando as pessoas das outras comunidades a ajudar! Mas eu preciso do seu consentimento, Rogério, você é o líder dessa gente!...
- Não sei, Fátima... Eu não sei...
Seu pai estava sentado na borda do sofá simples da sala. Pernas abertas, uma mas mãos apoiada no joelho e a outra coçava a cabeça dolorida. A expressão derrotada nos olhos preocupou Santos. A mãe, sem dizer mais nada, retornou à cozinha, enquanto Rogério permaneceu em silêncio. Santos se aproximou do pai, sentando ao seu lado e tocando-lhe os ombros com carinho.
- Pai, não vai ter desfile esse ano?
A Imperatriz Leopoldinense era a escola de samba da comunidade São Sebastião. Estava tudo pronto para o Carnaval no final do mês, mas as despesas estavam pesando e temia-se que não se conseguisse pagar tudo. Os carros estavam pela metade, as fantasias atrasadas... Estava perfeito nos planos. Eles com certeza ganhariam o carnaval aquele ano, mas o dinheiro estava acabando... E isso doía o coração de Rogério, imaginar que sua comunidade perderia a unica chance de mostrar todo o seu potencial naquele ano. A única alegria daquele povo... Não queria arrancar-lhes a felicidade dos braços.
- ...Vai sim, filho. - Rogério sorriu sinceramente, vendo a esperança nos olhos brilhantes do filho, abraçando-o com carinho - Vai dar tudo certo...
- Se eu pudesse ajudar de alguma forma... - disse, aquecendo-se ao corpo forte do pai.
- Oras, você é menino ainda! Não teria como arranjar dinheiro, Santos. - Rogério riu - Não se preocupe, nós vamos desfilar esse ano sim... Vá brincar com seus amigos, vá.
Logo esqueceu do que havia acontecido. A bola escalpelada rolava livre pela rua mal esfaltada, onde os meninos de pés descalços brincavam sem reclamar com alegria. Empolgado, Santos enterrou seu pé com toda a sua energia na pelota, fazendo-a voar muito alto e muito longe. Quem passava na rua se admirou com a força do chute. Mas ela voou longe demais, e ultrapassou a cerca que circundava os primeiros metros de mata fechada da Floresta da Tijuca, a maior reserva florestal do país - ou mesmo da América Latina. Os meninos ficaram, por muito tempo, encarando o lugar onde justamente a bola deu de cair. Silênciosos, e sem reação.
- Iih, Santos. - comentou Formiga, amigo de Santos; Era o menor da turma, e falava sempre de forma muito calma - Olha onde você jogou a bola!
- Os guardas não vão devolver! - disse Raimundo, outro colega de Santos - Pior que essa era a única que eu tinha!
- ... Eu vou tentar pegar.
Que diabos aquele Santos estava falando? Não teria como ele atravessar aquela cerca enorme. Mas prometeu que voltaria com a bola, e teve o apoio dos colegas. Sabia de uma passagem cavada por baixo da cerca, e apesar do seu corpo magro ter dificuldades para passar pela pequena abertura, ele conseguira chegar ao outro lado.
A mata era íngreme e fechada. O clima úmido e abafado não incomodou o moreno acostumado àquele calor avassalador. Ás vezes precisou apoiar-se em pedras longas para subir, e ainda não havia encontrado a bola. Teria chutado com tanta força assim? Começava a se sentir feliz por ela não ter sido aparada, poderia até atravessar a barriga magra do goleiro!
Encontrou a bola! Porém ouvira um barulho estranho. Parecia o assoviar de um flautim. Já havia encontrado a pelota, então investigaria a fonte daquela linda melodia. Encontra-se numa vasta lagoa de rara beleza, no meio da floresta, com uma enorme clareira na qual o Sol banhava com seus raios luminosos.
Viu algo grande submergindo da água. Tinha todos os motivos para ter medo, sair correndo, mas não o fez. Sentiu uma atração pela criatura. Era grande, tinha traços de mamíferos aquáticos. Apoiada sobre as patas traseiras, deveria ter mais de 2 metros de altura. Sua pele era branca e azul ciano, tinha um olhar bondoso e gentil que atraiu e atiçou a curiosidade do jovem brasileiro. Tinha um par de asas nos ombros, grandes o bastante para poder levantar seu corpo esguio do chão.
O rapaz se aproximou. A criatura, sem mexer os lábios, balbuciou algumas palavras.
- Olá, jovem Santos.
Um pouco receoso, o rapaz respondeu, engolindo seco. Mal piscava os olhos diante de um ser tão belo.
- Olá... Você é um monstro, certo?
- Corretamente. Há muito espero alguém de valor para me manifestar.
- Valor? - sua humildade o reprimiu - Mas... Muitas pessoas aparecem aqui todos os dias. Por que você apareceu justo para mim? Quero dizer... - confundiu-se - Eu não sei nem o seu nome...
- Eu sou um Flyptid. E apareci para você porque as pessoas que frequentam esta floresta abençoada não são dignas da minha aparição... Me cobiçarão e me caçarão, mas nunca me encontrarão.
- Nossa... Flyptid, você é tão bonito! Nunca havia visto um monstro como você! Pra falar a verdade... Você é o primeiro que eu vejo.
- Eu sei, Santos. Eu esperei tanto por esse momento...
A criatura fechou os olhos com alegria, parecia muito feliz.
- Me leve com você, Santos. Por favor, eu lhe rogo. - disse, educadamente.
- Mas, Flytid! E-eu não tenho como sustentar você! Quero dizer, você é grande, e nós mal podemos criar um cãozinho, quem dirá!...
Flyptid riu da ingenuidade do rapaz, que calou-se. Acalmando-se, olhou para Santos com carinho.
- Santos, eu não preciso de nada além de um pouco de água... E juntos, eu prometo que traremos prosperidade à sua família e comunidade.
- Mas, como?... Talvez a gente nem desfile no Carnaval desse ano, estão todos tão preocupados... Eu só queria poder fazer algo por eles.
- Vai tudo dar certo, Santos... Confie em mim. Me deixe ser seu amigo.
Um amigo. Santos sentiu que a majestosa criatura o compreendia. Flyptid abaixou sua cabeça, e Santos a alisou com carinho. Estava selada a união entre o jovem da comunidade São Sebastião e a estranha criatura da Floresta da Tijuca, que por tanto tempo, lhe esperou pacientemente.
Continua...